sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Contrastes

E fui, fui para a favela, aqueles caminhos de terra e os barracos mal-cheirosos. À entrada, a Dona Jozilda vende frutas e milho. Crianças correm atrás de uma pedra e jogam uma espécie de futebol com ela. O senhor Fábio convida-nos a entrar na sua humilde casa. Cheira a podre lá dentro. Tem dois compartimentos: a sala de estar, composta por um sofá, uma banca, uma TV e uma mesa onde a TV está apoiada, e o quarto, onde está uma mini-cama e um balcão. Tem ainda os arrumos, com paus e metais, à porta de casa. O senhor Fábio mora ali com a mulher, a cunhada e os dois filhos pequenos. Cães com sarna passeiam-se pelo Morro Alto (acabei por não ir à Rocinha, fui antes para o Morro Alto). Um grupo já se junta à nossa volta para responder às perguntas do jornalista. Quem por ali passa olha de soslaio para as duas personagens intrusas no seu espaço. Alguns param e ficam ali a olhar. O objectivo é continuar a penetrar a favela, mas o jornalista ainda inexperiente, para minha surpresa, decide pôr-se ali a falar ao telemóvel de forma nervosa. Uma alma penada decide avisar-nos que não deveriamos estar ali e que é melhor não seguirmos mais em frente, que as coisas vão pior. Dezenas de pares de olhos estão fixos em nós. Na verdade, o trabalho está feito. É melhor mesmo voltarmos para trás e chamar o carro rapidamentte. "Tem 20 segundos para estar aqui", diz o jornalista, mais nervoso ainda do que eu.
Dia seguinte...
Acordo de madrugada. Uma longa viagem espera-me até Ilhabela, uma ilha chique, cara e elitista. Durmo durante quase toda a viagem. São 10 horas quando acordo e começo a mirar uma paisagem esplêndida. Lá do alto da montanha, pelo caminho sinuoso, o céu limpo realça um mar azul claro e a área verde protegida. A travessia só pode ser feita de helicóptero, de iate ou no ferry boat que nós apanhamos. Levo o repelente para afastar os insectos. Mas não vejo muitos e eles não me atacam. Carros de grandes marcas, gente da classe alta e poucos moradores humildes preenchem alguns pontos da cidade, ainda com pouca mão-humana, repleta de árcores, com pequenas praias, com palmeiras e coqueiros e aquele mar tão azul. Está calor e sinto aquele dia como uma inspiração de tranquilidade e paz. Somos quatro pessoas e raras são as frases que se soltam. O centrinho é como uma pequena vila. E aquela paisagem hipnotiza-nos a todos.
Este tema também já é recorrente. A miséria e as classes sociais altas. O choque é profundo, garanto-vos. Há uma fatia da população de São Paulo que se movimenta apenas de helicóptero. É como uma gradação. No chão, bem no chão, os mendigos deitados. À medida que vamos erguendo a cabeça chegamos às pessoas de classe média. Se olharmos o céu, aí sim, estão os grandes ricos, naqueles transportes movidos a hélice que frequentemente atravessam os céus e me acordam de noite. Sempre longe, lá bem longe, como se de um trono se tratasse e nós, fiéis submissos, aqui em baixo, fizessemos vénias. Depois há estas ilhas, estes lugares reconfortantes, a que só eles têm acesso. Várias vezes, ao andar de carro nos arredores de São Paulo, vemos imensas favelas e, ao lado, enormes mansões. O problema não está nas favelas. O problema está nas mentalidades. Os grandes ricos vêm as coitadas das pessoas das favelas como uma praga. Dizem coisas como "tirem essa gente daí, já nem se pode estar em paz!". Em vez de comprarem um helicóptero para cada membro da família, por que não comprarem uma casinha humilde a uma família da favela? Não sei quem será pior.

Um comentário:

Anônimo disse...

Mais um belo texto Helguinha, 5 estrelas...
É o relato da velha história do mundo...haver dinheiro há...ele esta é mal distribuido!